quarta-feira, 24 de setembro de 2014

«41 ANOS DA INDEPENDÊNCIA DA GUINÉ-BISSAU E DEPOIS DE CABO-VERDE» "FUI UM NEGOCIADOR ASTUTO", CONSIDERA PEDRO PIRES

Pedro Pires foi Presidente da República de Cabo Verde durante dez anos

Em 1974, Pedro Pires liderou a delegação que negociou com Portugal o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e depois de Cabo Verde. O PAIGC era o movimento de libertação "legítimo", sublinha o antigo Presidente.

Natural de São Filipe, na ilha do Fogo, Pedro Pires é um dos mais conhecidos combatentes da luta pela independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Foi o responsável pela logística da tomada do quartel português de Guiledje, a 25 de maio de 1973, considerada um dos principais momentos da história da libertação da Guiné-Bissau.

Em 1974, Pedro Pires liderou a delegação do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAICG) que negociou com o Governo português o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e posteriormente de Cabo Verde. Hoje, aos 80 anos, diz ter sido um "negociador astuto".

O arquipélago passa a ser independente a 5 de julho de 1975, já depois da declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau, a 24 de setembro de 1973, que Portugal só reconheceu a 10 de setembro de 1974.

Pedro Pires foi primeiro-ministro entre 1975 e 1991 e duas vezes Presidente da República (2001-2011). Foi galardoado com o Prémio Mo Ibrahim de boa governação em 2011. Além de presidente da Fundação Amílcar Cabral, atualmente lidera também o Instituto Pedro Pires.

Nesta entrevista à DW África, o antigo chefe de Estado começa por recordar os tempos em que aderiu à luta de libertação nacional.

DW África: Estudou em Portugal, onde frequentava a Casa dos Estudantes do Império. Conheceu la Amílcar Cabral e outros futuros dirigentes de movimentos independentistas. Foi aqui que despertou verdadeiramente para a política?

Pedro Pires (PP): Sim, mais ou menos. Com o tempo, com o relacionamento e com os estudos, geralmente evoluímos. Evoluí aí para a política e para a opção de integrar o movimento de libertação da altura, o PAIGC.

DW África: Na altura estava impressionado com o pensamento político de Gandhi e chegou a pensar que a luta armada não era necessária. Como é que se convenceu que era preciso pegar em armas?

PP: Não era que a luta armada não fosse necessária. A ideia era que podíamos utilizar outros métodos sem ter de recorrer à violência armada. Eu estava convencido que isso era possível. Tinha lido algumas coisas sobre resistência passiva, sobre desobediência civil. Pensei que se podia utilizar esse método pacífico. Mas com o tempo mudei de opinião ao ver o que se passava à nossa volta e assumi a necessidade de participar naquilo a que podíamos chamar a luta armada de libertação nacional ou violência armada.

DW África: Depois desertou do exército português e fugiu para Paris em junho de 1961, juntamente com outros estudantes africanos, e começa a agir na clandestinidade. Como era viver assim?

PP: Na verdade, nós já agíamos clandestinamente, mas não de uma forma organizada em Portugal. Uns em Lisboa, outros em Coimbra e noutras cidades portuguesas. Mas a fuga para Paris permitiu-me entrar em contato direto com o PAIGC e, dois ou três meses depois, a minha incorporação real nas estruturas do movimento. O nosso grupo era bastante grande, à volta de 60 jovens, rapazes e raparigas.

DW África: E depois esteve no Senegal, onde trabalhou na mobilização de emigrantes cabo-verdianos.

PP: Era importante a participação dos cabo-verdianos da diáspora ou das comunidades cabo-verdianas, não só no Senegal, mas também nos Estados Unidos da América, em França, na Holanda e noutros países europeus. Nós íamos trabalhar onde havia maiores possibilidades de sucesso e onde corríamos menos riscos. O Senegal era um país africano próximo de Cabo Verde - estamos a cerca de 500 quilómetros de distância -, de modo que havia comunicação.
Assinatura do acordo que fixou a data da independência de Cabo Verde. Na foto (da esq. para a dir.): Mário Soares, Melo Antunes, Vasco Gonçalves, Pedro Pires, Almeida Santos e outros dois representantes do PAIGC

DW África: Depois de quase dois anos de preparação em Cuba, estava previsto o desembarque de um grupo de guerrilheiros que comandaria, mas com a morte de Che Guevara, na Bolívia, o plano é cancelado. Hoje, reconhece que esta era uma "operação suicida", para usar as suas próprias palavras? Era algo utópico?

PP: Seria extremamente complicado. O importante é que abandonámos esse projeto por razões várias, entre as quais a sua dificuldade, mas também a dificuldade de conseguir os meios necessários para o concretizar. De toda a maneira, seria um projeto extremamente complicado e difícil, que podia até estar condenado ao insucesso. Mas mesmo que fosse condenado ao insucesso teríamos lançado as sementes à terra e, no futuro, colheríamos certamente os frutos a que aspirávamos.

DW África: A não concretização da luta armada em Cabo Verde gerou frustração entre muitos militantes e entre muitos cabo-verdianos havia o sentimento de que a direção do PAIGC concentrava os esforços sobretudo na Guiné-Bissau e que Cabo Verde estava, de certo modo, sem rumo. Como lidavam com esta situação?

PP: Olhe que eu sou cabo-verdiano e sempre agi como tal. Mas nós temos de ser realistas, pragmáticos, e estabelecer os nossos objetivos de acordo com a possibilidade que nós temos de os concretizar. Não de acordo com os nossos sentimentos ou afetos. O fundamental era criar as condições para que, mais tarde, pudéssemos atingir esse objetivo. Portanto, aqueles que pudessem defender outra ideia agiam na base da emoção e não na base da razão. Eu, pessoalmente, procurei sempre agir na base da razão. Foi na base da razão que investi todo o meu saber, toda a minha capacidade no triunfo da luta de libertação na Guiné, convencido de que estava também a contribuir para a libertação de Cabo Verde.

DW África: Diz-se que dos combatentes cabo-verdianos era aquele que mais se aproximava de Amílcar Cabral.

PP: Amílcar Cabral era uma fonte de inspiração. Por outro lado, era o nosso líder, com o qual tínhamos relações de cumplicidade, de lealdade, de amizade, mas também de obediência, porque ele era o nosso dirigente. Em relação à sua pessoa, fui sempre um amigo, acho que bastante sincero, e ao mesmo tempo procurei aprender muito com ele e ser coerente quanto aos objetivos que o PAIGC tinha, e que Amílcar Cabral tinha, em relação ao futuro dos nossos países e da humanidade em geral.

Amílcar Cabral era um humanista, mas não era uma pessoa centrada na África, na Guiné ou em Cabo Verde. Tinha uma visão muito mais ampla da luta dos homens e das mulheres, da humanidade, por um mundo melhor, mais seguro - pacífico, mas também mais equitativo. Foi nessa base que houve coincidência, ou pelo menos convergência, entre a nossa forma de estar e os objetivos que nós mesmo estabelecemos na nossa vida.
Pedro Pires, então comandante do PAIGC, condecora um membro da delegação do Comité de Descolonização da ONU em visita às regiões libertadas da Guiné-Bissau (1972)

DW África: Como é que lidou com a morte de Amílcar Cabral?

PP: Foi uma fatalidade infeliz, penosa, difícil... Tinha-se consumado a morte, o desaparecimento dele. O fundamental era mantermo-nos leais, fiéis àquilo ao nosso compromisso com ele, ao nosso compromisso de emancipação e de independência. Apesar da ausência, inspirámo-nos nele, na sua perspetiva. E inspirámo-nos muito no seu sacrifício. Porque a sua morte é o preço máximo que ele pagou pelos seus ideais e pela independência dos nossos países. A mim competia-me tão somente procurar levar até ao fim esse compromisso que tínhamos entre nós e com os nossos povos. A minha decisão era de fidelidade a esse combate e aos interesses maiores dos nossos povos.

DW África: A tomada do quartel de Guiledje, a 25 de maio de 1973, já depois da morte de Amílcar Cabral, é considerada um dos principais momentos da história da libertação da Guiné. Nessa altura era o responsável pela logística da operação. Como é que viveu esse dia?

PP: A tomada de Guiledje foi importante pela sua posição estratégica. Ficou aberto o caminho para a entrada das nossas forças, dos nossos meios mecânicos, no sul da Guiné. É preciso ter em conta que essa operação estava a ser preparada há muito tempo, ainda quando Amílcar Cabral estava vivo. Já tínhamos avançado com as ideias e também com as operações de reconhecimento. Saber o que íamos fazer e como íamos fazer. Depois disso aconteceu um facto que apoiou, ou veio a nosso favor, que é a entrada em ação dos foguetes antiaéreos portáteis, os SAM II, que nós na nossa linguagem na Guiné chamávamos Strela.

Com a entrada em ação no campo militar desses foguetes Strela criámos as condições para que a operação Guiledje fosse um sucesso. Mas tenhamos em conta que também houve operações com êxito no norte da Guiné, como Gidaje e outras. Foi um envolvimento maior do que Guiledje. No entanto, Guiledje teve um valor estratégico muito maior, teve um impacto maior e um efeito desmoralizador no seio das forças armadas portuguesas muito maior.
Pedro Pires, na altura comissário de Estado-Adjunto para as Forças Armadas

DW África: Antes do 25 de Abril de 1974 em Portugal, o PAIGC já tinha reforçado os ataques aos quartéis lusos. Portanto, a Revolução dos Cravos não foi uma completa surpresa para o movimento?

PP: Para além do conhecimento da nossa própria situação, nós acompanhámos a situação do nosso inimigo, como é que estava do ponto de vista operacional, mas também do ponto de vista moral. Houve sinais percetíveis de que podia haver uma mudança. Um foi o próprio livro do general Spínola, "Portugal e o Futuro". Essa reflexão, dele e certamente de outros que estavam próximos dele, sobre o futuro de Portugal dava-nos a entender que as autoridades portuguesas e alguns portugueses estavam a pensar numa saída para a guerra colonial.

Mas, mais do que isso, a saída do general Spínola da Guiné - de onde saiu derrotado - e a mudança de algumas chefias militares, sobretudo no seio dos comandos africanos, eram sinais percetíveis de que a situação não era boa para os militares portugueses na Guiné. Por fim, o movimento nas Caldas da Rainha, que aconteceu a 16 de março do mesmo ano, foi outro sinal percetível. Nós estávamos convencidos que alguma coisa estava para acontecer. Creio que nessa altura já se falava no Movimento dos Capitães. Portanto, o 25 de Abril não foi uma completa surpresa.

DW África: Em 1974, liderou a delegação do PAIGC que negociou com o Governo português em Londres, Argel e Lisboa o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e posteriormente de Cabo Verde. O processo cabo-verdiano era um dos pontos de divergência nas negociações?

PP: Está claro que teria de haver divergências, pontos de vista diferentes e até interesses diferentes. Temos de analisar isso na base de interesses e na base de alguma visão histórica. Creio que as autoridades portuguesas não estariam tão interessadas na independência de Cabo Verde. Foi uma posição inicial que evoluiu depois para a independência de Cabo Verde.

DW África: Mas não foi um processo difícil? Almeida Santos, por exemplo, disse que Pedro Pires foi um "negociador duro".

PP: Não tanto, não tanto! Acho que terei sido um negociador astuto, inteligente, capaz de manusear os seus argumentos conforme as circunstâncias. Terei sido mais isso do que um negociador duro. Eu, particularmente, tinha aprendido muito, nas negociações, mas também na vida política. Nós temos de negociar, mas também temos de ter em conta que a entidade com a qual negociamos também tem interesses próprios e teremos de ter em boa e devida conta os interesses do nosso interlocutor. E eu sempre procurei fazer isso.
O primeiro-ministro português, Vasco Gonçalves, na cerimónia de proclamação da independência de Cabo Verde, na Cidade da Praia (05.07.1975)

DW África: Em junho de 1975 são realizadas eleições em Cabo Verde. Hoje, várias vozes admitem que foi um "grande erro" cometido pelo PAIGC a neutralização ou prisão de eventuais concorrentes. Falo de elementos da UDC (União Democrática de Cabo Verde) e da UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde), alguns dos quais foram até presos no Tarrafal, que foi temporariamente reativado. Acha que teria sido importante para o partido ter sido legitimado democraticamente e não ter apenas a legitimidade histórica?

PP: Não, não. Nós representamos a vontade dos cabo-verdianos. Houve muitos movimentos que nasceram depois do 25 de Abril de 1974. Está claro que são coisas fabricadas e, mais do que isso, sem qualquer legitimidade ou trabalho feito para se legitimar.

O PAIGC, na verdade, era o movimento de libertação nacional legítimo, legitimado internamente e internacionalmente. Nós, como atores políticos, teríamos de tirar todo o proveito disso e não nos podiam pedir que tivéssemos uma atitude infantil de entregar o poder a quem não fez nada por ele. Portanto, sejamos objetivos, mas também realistas. Foi nessa base que agimos. Muitas pessoas têm análises fantasiosas que não têm em conta a realidade.

DW África: Houve algum episódio durante a luta de libertação nacional que o tenha marcado em especial?

PP: O assassinato de Amílcar Cabral foi um momento trágico e difícil. A conquista de Guiledje, por exemplo, foi o contrário. Foi uma vitória mobilizadora e inspiradora. A vida é formada por momentos de dor, de sofrimento, mas também de momentos de alegria. Tive tudo isso junto, mas foi tudo isso que nos fez caminhar e nos fez estar hoje aqui.

DW África: Fazendo o balanço dos últimos 40 anos, a luta valeu a pena?

PP: Tudo o que seja a conquista da liberdade, da dignidade e dos direitos, e particularmente do direito à autodeterminação e independência, vale sempre a pena. Mesmo que tenhamos durante a implementação alguns erros ou deficiências, vale sempre a pena porque o objetivo final é nobre e necessário.

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