sexta-feira, 27 de março de 2015

«RACISMO E PRECONCEITO» "GOSTO DE FALAR DE RACISMO PORQUE HÁ QUEM PENSE QUE TUDO VAI BEM"


O ex-jogador francês Lilian Thuram trocou o futebol pelo activismo, e esteve em Luanda para lançar o seu livro.

Por Miguel Gomes Do Rede Angola

Lilian Thuram é um nome que dispensa apresentações para quem gosta de futebol. Para além de ter sido um excelente jogador (fisicamente forte mas com técnica e muito conhecimento sobre o jogo), foi campeão do mundo em 1998, no mundial disputado em França. No ano 2000 foi ainda campeão da Europa de selecções. Ao longo da carreira jogou profissionalmente por quatro clubes: Mónaco (França), Parma e Juventus (Itália) e Barcelona (Espanha). Com 142 presenças na selecção francesa é, actualmente, o jogador mais internacional da história daquele país europeu.

Hoje em dia, Thuram dedica-se a ser um activista contra o racismo. Foi por isso que veio a Luanda, onde apresentou, quarta-feira, 24, o seu livro As Minhas Estrelas Negras. Utiliza a fundação homónima para divulgar uma narrativa histórica diferente, que valorize mais os colonizados, em detrimento dos colonizadores. Assume ainda que só uma educação de alto nível pode servir de faísca para uma nova consciência. E exorta os líderes africanos a apostar seriamente na valorização das suas sociedades.

Porque decidiu criar a Fondation Lilian Thuram, que tem o seu foco principal nas questões que envolvem o racismo?

Porque cheguei a França quando tinha 9 anos. Nasci em Guadalupe (território administrativo francês) e fui para Paris. A minha mãe tinha ido algum tempo antes para trabalhar e preparar as condições para a família. Eu e os irmãos ficamos sozinhos. Quando cheguei a Paris, na escola tinha dois colegas que falavam da cor da minha pele de forma muito negativa. Eu perguntava: porquê? Nunca tinha tido esse tipo de conversas antes de chegar a França. Era uma realidade nova ser considerado negro.
O que recorda desses primeiros tempos em França?

Recordo-me que havia uma banda desenhada que tinha duas vacas: uma negra, muito estúpida, e uma branca, muito inteligente. As crianças chamavam-me de vaca negra e eu não entendia porquê. Em casa, um dia, perguntei à minha mãe e ela disse: “É assim mesmo, as pessoas não gostam dos negros. É normal”. Mas eu nunca entendi o porquê das coisas. Pouco a pouco fui aprendendo, lendo, falando com as pessoas, e cheguei à conclusão que o racismo é algo cultural. É uma construção. É uma hierarquia social definida pela cor da pele. Acontece o mesmo entre os homens e as mulheres, por exemplo. No mundo do futebol, já em Espanha, várias pessoas convidavam-me para falar para crianças, na escola. Fi-lo várias vezes. Depois disso, em Barcelona, em 2008, recebi um convite do cônsul francês naquela cidade que me perguntou: “Thuram, o que queres fazer depois do futebol?”. Eu disse que quero fazer algo grande. Quero mudar o mundo.


Como? Com a fundação?

Foi o que ele me perguntou: como vais mudar o mundo? Acho que é importante ir às escolas, falar com as crianças, e explicar que falar de racismo não é uma coisa difícil. As pessoas pensam que é muito difícil. Mas não é.

Há quem diga que é preferível não falar de racismo e que este tipo de problemas serão naturalmente resolvidos com o passar do tempo.

Mas as pessas não gostam de falar de racismo porque são hipócritas. Muitas vezes as pessoas não querem falar apenas porque estão bem acomodadas dessa forma.

Numa zona de conforto. Pensam que falando destes temas estamos a colocar em causa o seu bem-estar?

Sim, e foi por isso que preferi enveredar pelo caminho da fundação. Assim posso falar directamente com as crianças e dialogar com a sociedade em geral sobre este tema. E fi-lo, também para acudir à demanda das pessoas. Eu gosto de falar de racismo porque é algo fácil de fazer e porque o racismo está impregnado na nossa cultura. Se é algo cultural, então cada pessoa deve pensar no problema. Porque muitas vezes tens dentro de ti um modo de pensar, uma cultura racista, uma prática racista, sem teres consciência disso.

Na sua opinião devemos questionar tudo: a cidade onde vivemos, a educação que nos dão, os caminhos que a sociedade nos indica?

É muito importante questionar. Porque se queres mudar, necessitas de questionar para entender o contexto em que estamos. Caso contrário serás levado pela construção que nos envolve, pela vontade da família, dos vizinhos, da pressão social, e acabas por ficar fechado dentro de um caminho pré-definido.


Como analisa a questão do racismo em África? Por exemplo, a história que enfrentou em França é uma realidade diferente da maioria dos países africanos, já que os sistemas de ensino são compostos por alunos e professores negros. Em África a luta contra o racismo precisa de outras estratégias?

O racismo não é apenas uma questão das pessoas brancas em relação às pessoas negras. Também pode ser o contrário. Mas é importante entender o racismo porque falamos de uma hierarquia entre as pessoas. Eu penso que o racismo diz-nos sempre que os negros são inferiores. E para mim é importante tentar falar disto. Porque eu penso que a sociedade, seja em Angola, em França, no Brasil ou em Guadalupe, está construída à volta desta ideia. E o que pensam os negros? Para mim é importante saber. Muitas vezes penso que se tu estás dentro deste problema, desta construção, tu podes ter um complexo de inferioridade. Para África isto é muito importante, porque todas as construções da história são construções de uma história eurocêntrica. Em Angola acontece a mesma coisa. Então precisamos de falar sobre isto. Em primeiro lugar, é preciso entender a imagem que tens de ti mesmo. O que representas e que lugar tens na sociedade. Para mim, é muito importante esta auto-suficiência, este auto-conhecimento. A determinada altura, quando era jovem, houve uma campanha em França, contra o racismo, em que uma mão branca dizia para os negros: “Eu estou contigo e vou-te defender”. Isto é bom. Mas também é paternalista. Dizer que não consigo defender-me sozinho, que necessito de uma pessoa para interceder, não faz sentido.

A campanha parecia reforçar a ideia de que um “bom negro” é um negro que vive, pensa, veste-se e aceita os hábitos dos brancos. É uma ideia que ainda subsiste, que é preciso ser muito parecido com os brancos para ter acesso a uma vida melhor?

Não era a mesma coisa. Mas o que disse é muito importante. Eu sou de Guadalupe. A história de Guadalupe é uma história de violência e de escravatura. Durante muitos séculos disseram às pessoas que elas não são boas porque são negras – para ser uma boa pessoa tu deves, no mínimo, comportar-te e parecer-te com os brancos. Por isso é que as pessoas com um tom de pele mais claro, e por isso mais próximo do padrão dominante, são vistas como boas pessoas. Em Guadalupe, diz-se que “salvaram a pele”. Na época da minha mãe era muito importante casar com uma pessoa que tivesse a pele mais clara, para ter um filho com mais possibilidades de estudo e de emprego.


Em Angola, o equivalente a essa expressão, que se ouve de vez em quando, é “avançar a raça”.

Ah ok, não sabia… Em África ou em França é a mesma coisa: as pessoas pensam que, se alguém tem uma pele clara, então falamos de uma pessoa naturalmente melhor do que as outras.

E que o facto de ser branco vai facilitar a vida, o emprego, a educação.

As pessoas não são estúpidas. E quando olhas para a sociedade em geral, tu vês que as pessoas mais poderosas são brancas. Então é muito importante que os negros tenham auto-confiança. Em África, mas também na Europa, é fundamental ter acesso a uma educação de qualidade. É fundamental que os jovens aprendam a história do mundo. É a minha primeira vez em Angola, mas quando vou ao Senegal ou a outros países é muito estranho perceber que as pessoas valorizam mais o francês do que as suas línguas maternas. Eu digo que isto também é um problema, porque as línguas têm uma história muito longa. Eu percebo que se construa uma hierarquia, que tem várias dinâmicas importantes, mas não entendo como podes dizer que a tua língua é inferior. Neste caso, estás também a dizer que a tua cultura é inferior.

A população precisa de educação de qualidade para entender que o mundo pode ser feito de uma maneira diferente”

Os problemas do racismo são muito parecidos, independentemente de falarmos de África ou de outras regiões do mundo?

É igual. Porque esta é a história do mundo: não é a história de África ou da Europa. É a história de todos. É fundamental falar do racismo. A construção social dos diferentes grupos foi feita em cima da cor da pele. Isto é muito perigoso, porque é uma hierarquia baseada em pressupostos errados. A história criou muros entre as pessoas. Por exemplo, em França quando me dizem “tu és negro” eu penso: “O que se passa com as pessoas?”. Quando as crianças apontam o dedo, elas basicamente estão a dizer que são melhores do que o outro. Isto é um vício de pensamento. Gosto de falar de racismo porque há quem pense que tudo vai bem. Mas vejamos: em Angola a colonização terminou há quanto tempo?

Em 1974-1975. Foi “ontem”.

A colonização baseou-se numa hierarquia social, na racialização da sociedade. Acho que é preciso falar disto, tranquilamente, para podermos mudar as coisas.

Mudar uma construção de séculos é difícil, é preciso lutar para despir uma série de conceitos que estavam dados como adquiridos.

Sim, é muito complicado. Mas a construção de uma pessoa é mais difícil ainda. Mudar é muito difícil. Mas pode-se mudar falando das coisas, fazendo uma educação para que as pessoas entendam o que está em causa.

Nesse caso a educação é fundamental. Mas deve ser uma educação virada para a criação de estímulos que permitam sair fora do padrão, na sua opinião?

Claro, a educação deve abrir a mente. Muitas vezes, as pessoas não se perguntam, não se questionam. Por isso digo que o racismo é perigoso e é cultural. Quando és criança, a primeira coisa que se diz é que deves ser assim ou assado. Se quiseres ser de uma forma diferente vais ter problemas. Por isso é que a educação deve permitir às pessoas que pensem pela própria cabeça. Quando viajo, muitas vezes pergunto às crianças: “Quem foi Cristóvão Colombo?”. E elas respondem, de forma muito simples: “Senhor Thuram, foi o homem que descobriu a América”. E eu pergunto: “De certeza?” Saio da sala e volto a entrar e digo: “Bom dia senhores, acabei de descobrir esta turma”. E os jovens respondem: “Não, senhor Thuram, já nos encontrou aqui”. Em França, em 2015, também se diz que o Cristóvão Colombo descobriu a América. São coisas que precisamos de mudar. A gente que foi assassinada também conta. Mas há uma hipocrisia geral que as pessoas não querem ver. Tu, se és homem, sabes que tens vantagem em ser homem.

O salário é melhor, é mais fácil ter um trabalho, os homens são mais escolarizados, ocupam praticamente todas as posições de topo.

Sim e tens sempre homens que se chegam para trás e dizem “não, isso não é verdade”. Então precisamos de falar abertamente – e no final da conversa muitos reconhecem que é, sim, a realidade. Há muita gente que é previligiada na vida apenas por ser branco ou apenas por ser homem. É a realidade. Por exemplo, vamos olhar para o mapa do mundo.

Eu sei que tem um mapa “trocado” na sede da sua fundação.

Sim, é verdade, mas não é um mapa “trocado”. É uma forma de mudar a maneira como as pessoas vêem o mundo. Em Luanda, no aeroporto, reparei num mapa com uma publicidade. Mas é incrível porque eu pergunto: aqui estamos em África. Certo. Mas a representação do mundo, mesmo em África, continua a colocar a Europa no centro. E com as dimensões reais do continente europeu claramente aumentadas. Eu não entendo porquê. Na fundação estamos a trabalhar num novo mapa do mundo.


Parece haver uma super-valorização de certas proveniências. É importante mudar a forma como se perspectiva a história?

Exactamente. Muitas vezes as pessoas pensam da mesma forma como a história lhes é contada. É como a história do Cristóvão Colombo – e limitamo-nos a dizer e a encolher os ombros “ok, é assim”. Mas desta forma não estamos a pensar. Necessitamos de ter a problemática do racismo bem estudada e bem debatida, sobretudo em África.


Hoje em dia parece-me que uma das formas de analisar o racismo passa por analisar a estruturação económica do mundo e a forma como o poder económico funciona. Há um racismo estrutural na maneira como as ex-potências coloniais continuam a explorar os recursos dos países com menos capacidade técnica. Mesmo assim, os jovens africanos ainda pensam que as grandes oportunidades de trabalho, de estudo e de sucesso na vida estão fora de África. É natural este pensamento?

Mas é verdade que quando vais para a Europa tens mais probabilidade de ter um trabalho digno. E se a minha mãe, por exemplo, não tivesse deixado Guadalupe teria menos probabilidades de dar um caminho diferente aos seus filhos. Ela, de manhã, trabalhava nas plantações de cana e à tarde fazia outras coisas. Um dia foi para Paris à procura de uma oportunidade.

Sabendo que na sociedade ocidental o “outro” é normalmente afastado dos centros de decisão e de visibilidade não lhe parece que há uma narrativa dominante que acaba por iludir muitas pessoas?

Não. O que é importante é: porque os jovens de Angola pensam que a Europa é melhor? Porque muitas vezes, na Europa, as oportunidades são mesmo reais. Há espaço para aproveitá-las. Então os políticos deste país, de Angola, precisam de pensar verdadeiramente nos cidadãos. A população precisa de educação de qualidade para entender que o mundo pode ser feito de uma maneira diferente. Muitas vezes, os países tratam mal as crianças, dão-lhes uma educação de nível muito baixo.

De facto é um problema que enfrentamos em Angola. O sistema de educação público é de baixo nível e não capacita os angolanos a pensar pela própria cabeça.

Julgo que muitos países enfrentam o mesmo problema. Para entender o potencial de um país, é fundamental olhar para a educação e para as crianças. São eles que vão crescer e que depois vão construir o mundo de amanhã. Mas se tu não dás uma educação de qualidade, então como eles vão mudar de perspectiva?

Voltamos ao início da conversa: nesse caso, sem educação, é muito difícil desconstruir o mundo em que vivemos.

Quando chegas a um outro país e tens poucas possibilidades, ainda que eu não conheça a sociedade angolana, a gente mais explorada é a mais pobre. Em todos os países é assim, mesmo que sejas verde ou amarelo. É assim. Mas se tiveres uma liderança que te permite sonhar, que te permite saber que trabalhando duro, e colocando o teu filho na escola, tens a certeza que ele vai chegar mais acima, então a esperança é outra. Mas quando tens uma educação de muito baixo nível, tu não podes ter este sonho para o teu filho. É preciso que as pessoas que têm o poder em África respeitem os cidadãos. Este é o problema. Porque dar uma educação de alto nível é o mais importante para mudar o país. E, nesse caso, cada pessoa vai aproveitar o seu potencial. Para mim, a verdadeira riqueza de um país são as pessoas. Muitas das vezes os políticos não gostam de providenciar uma educação de alto nível porque depois as pessoas vão pensar nisto tudo. O que é um perigo para alguns políticos.

No futebol, normalmente ganha quem é o mais forte e o mais rico”


África vive actualmente uma geração pós-independências, que representou uma revolução, o reforço dos direitos civis – uma nova ordem. Mas em Angola temos um problema com as pessoas que subiram ao poder. Foram elas que nos libertaram do colonialismo mas, às vezes, parece que cometem os mesmo erros desse tempo.

Eu creio que devemos estar atentos a uma coisa: aparentemente, estamos numa época histórica pós-colonial. Não é verdade.

Não?

Não. Este conceito (pós-colonial), na realidade, não existe. A era colonial ainda não acabou.

Porquê?

Porque agora estamos num período de colonialismo económico. As mesmas potências coloniais continuam, ainda que de forma indirecta, a comandar o mundo. Ou seja, já não têm jurisdição sobre a terra – mas continua a ser uma narrativa colonialista.

Mas quando vamos mudar? É preciso que as pessoas participem na vida dos países, que sejam activas mas em África há uma série de pessoas que até hoje não participam em quase nada da vida pública.

Quando não tens uma educação de alto nível para entender o mundo de onde vens isto é um problema. No final do dia, o poder é sempre um poder económico.

No sistema capitalista quem não tem poder económico não tem poder real?

Sim, vivemos a era do poder económico. E estamos sempre na lógica de sermos uns contra os outros – e nunca pensamos de forma comum. Espero que, amanhã, possamos ter acesso a uma educação onde os homens não estejam contra ninguém – mas todos juntos. Precisamos de trabalhar para isso. Não podemos pensar que é uma utopia. Não é uma utopia.
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O desporto profissional é, hoje, um dos filhos pródigos do capitalismo. Por outro lado, o desporto em geral (amador e profissional) tem sido uma ferramenta interessante na desmistificação da história. De que forma pode o futebol contribuir para a mudança?

O futebol faz parte do capitalismo porque o futebol faz parte do mundo. O trabalho é assim. Não é só o futebol que vive na lógica capitalista, é toda a nossa vida. Mas eu concordo consigo. O perigo do futebol é que tem o potencial de criar conflitos inter-grupos: de país contra país, de cidade contra cidade, de bairro contra bairro. Depois posso dizer que, no futebol, normalmente ganha quem é o mais forte e o mais rico – não é comum dizermos às pessoas que ganhou o mais fraco.

É a realidade do futebol. As grandes referências são o jogador que ganha mais dinheiro, o treinador que ganha mais títulos, e as equipas mais ricas.

Sim. Por exemplo, muitas vezes tu sabes à partida quem pode ganhar os principais campeonatos. E quase sempre são os clubes ou as selecções mais ricas. Então, o futebol pode ser uma metáfora do mundo. Uma metáfora da vida. No entanto, o futebol ensinou-me que o mais importante não é pensar – é ter sonhos. É por isso que as pessoas adoram o futebol. É emoção pura. Sim, o capitalismo adoptou o futebol. Certo. Mas o futebol não é só isto. O futebol é uma coisa incrível, tem um poder incrível. O futebol é a vida.

geledes.org.br




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