quarta-feira, 24 de maio de 2017

GERALDO MARTINS PEDE ESTABILIDADE E CORAGEM POLÍTICA PARA A IMPLEMENTAÇÃO DAS REFORMAS NO PAÍS



[GRANDE ENTREVISTA parte 2 – fim] 

O antigo gestor do Banco Mundial e igualmente ex-ministro da Economia e Finanças dos governos do PAIGC nesta nona legislatura, Geraldo Martins defende a estabilidade política e governativa, que permitirá aos governantes ganharem a coragem política para a implementação de grandes reformas que o país precisa.

O ex-governante explicou ainda que o executivo em que fazia parte pretendia lançar um concurso público para a privatização da Guiné Telecom e Guinetel, ambas empresas públicas do país. Martins disse estranhar-se da forma como os atuais governantes conduziram o processo de negociação de contrato com a empresa ‘MGI Telecom’ para gerir o controlo e encaminhar exclusivamente todas as chamadas internacionais (entrada e saída) na Guiné-Bissau durante cinco (5) anos.



OD: Um relatório de auditoria sobre as contas do FUNPI indica a má gestão do fundo e a falta de colaboração de algumas entidades, particularmente bancos comerciais. No seu ponto de vista é normal a falta de colaboração de algumas instituições em particular, os bancos comerciais e a Câmara de Comércio, que desconfia da credibilidade da agência ‘KPMG’ contratada para o feito? 

GM: Quero lembrar aqui que o governo liderado pelo Eng. Domingos Simões Pereira foi instruído pela Assembleia Nacional Popular a realizar uma auditoria sobre a gestão das contas do Fundo de Promoção à Industrialização de Produtos Agrícolas (FUNPI). O Governo tomou a iniciativa de entregar o processo da auditoria ao Banco Mundial para a maior credibilidade e foi o próprio Banco Mundial, através de um projecto aqui, que conduziu todo o processo de auditoria.

O Gabinete recrutado para auditoria é ‘KPMG’ e é um gabinete internacional reconhecido, idóneo e foi esse gabinete que veio a Guiné-Bissau fazer essa auditoria. Eu, na qualidade do titular da pasta de Economia e Finanças, mandei cartas para todas as entidades que receberam fundos e que seriam objectos da auditoria no sentido de colaborarem com o gabinete, incluindo o próprio tesouro público. Os dinheiros gastos pelo Estado no pagamento das dívidas internas e outras despesas, tudo estão na contabilidade e tem rastos no tesouro público. Eu era o ministro da Economia e Finanças. Era eu quem tinha o controlo do tesouro, mas mandei uma carta e dizendo-lhes que colaborem com a auditoria para se verificar como é que o dinheiro fora gasto.

Todos colaboraram, mas a Câmara de Comércio recusou colaborar com a auditoria. A Câmara de Comércio mandou-me uma carta assinada pelo seu presidente na qual dizia que não concordava com o procedimento, com a abordagem e, porque não foram implicados na selecção do gabinete de auditoria, etc…por tudo isso, a Câmara de Comércio reserva-se o direito de não colaborar com a auditoria e foi isso que aconteceu.

Apesar de todas as despesas não justificadas que efectuou, a Câmara de Comércio recusou simplesmente a justificar e não justificou, porquê? Porque não têm justificativos! Não existe uma única peça de papel na Câmara a justificar a utilização de um (01) Francos CFA que receberam do FUNPI…

OD: O relatório indica anomalias na concessão de fundos. Lê-se no relatório nomes tipos ‘Maria’ simplesmente e sem que seja especificado se se tratava de uma empresa ou um indivíduo, mas que beneficiou do fundo. Como gestor, é admissível essa falha nas contas?

GM: Maria… olha o FUNPI é um problema, ou seja, é uma maquinaria que ninguém entende. No processo da auditoria descobriu-se que há uma conta que ninguém sabia da sua existência. Houve uma altura em que nós sabíamos da existência de outras contas, mas não temos acesso às referidas contas. Sabemos que no banco tal há uma conta tal do FUNPI. No processo da auditoria viríamos a descobrir que afinal havia uma conta secreta que desconhecíamos a sua existência e nessas contas havia fundos e esses fundos estavam a ser usados secretamente.

OD: Para além da Câmara de Comércio que não colaborou com os auditores, também o auditor queixou-se da falta de colaboração dos bancos comerciais. Quer fazer um comentário sobre isso?

GM: Não me surpreende que tenha havido dificuldades. Aliás, houve uma altura em que os auditores estavam a ser ameaçados de morte. Eu soube disso, porque os auditores, como sabe foram recrutados pelo Banco Mundial. Eu tenho uma relação especial com eles, porque venho do Banco Mundial. Foram altas individualidades do Banco Mundial que me disseram que os auditores disseram-lhes que estavam a ser ameaçados de morte. Quando há interesses muito complicados na eminência de serem desvendados e que há muita gente que não queria que se soubesse, então valeu tudo… houve uma altura em que os auditores ficaram um pouco com um pé atrás, mas acabaram por continuar o trabalho.

OD: Não acha que a guerra interna no PAIGC, entre a sensibilidade de Domingos Simões Pereira e da Braima Camará tem a ver com a questão da gestão das contas do FUNPI?

GM: Eu acho que o FUNPI, aliás, não é só o FUNPI. No passado também houve o pagamento da dívida interna… há várias coisas, por isso é que eu digo que o FUNPI é uma teia de interesses financeiros pessoais obscuros! Quando o governo de Eng. Domingos Simões Pereira decidiu acabar com o FUNPI, mexeu onde não devia ter mexido!

OD: Defende a responsabilização jurídica dos gestores das contas do FUNPI?

GM: Eu defendo a responsabilização jurídica sobre a má gestão dos fundos do FUNPI. Acho que não deve haver impunidade. Se houver crimes de má utilização de fundos públicos, as pessoas que têm responsabilidade devem ser responsabilizadas. Subscrevo que defendo a responsabilização jurídica como uma das formas de dissipar todas as dúvidas.

Lembro-me que fui chamado ao Ministério Público por causa de resgate bancário. Embora não vejo nenhum crime nesta operação, é evidente que quando passa uma informação deste género, tipo o governo fez um contrato com gabinetes de advogados e pagou três bilhões de francos cfa, etc… isto é escandaloso. Para já isso não é verdade. A questão foi parar ao Ministério Público. Enquanto cidadão, devo colaborar e já fui chamado ao Ministério Público várias vezes, no âmbito deste processo.

Eu dei a minha versão dos factos e expliquei exactamente aquilo que estou a explicar aqui e até agora não fui acusado de nada. Portanto, estou tranquilo. Penso que aqueles que geriram os dinheiros do FUNPI também devem ser chamados ao Ministério Público para irem responder pela forma como geriram os fundos. O que me deixa um pouco admirado é que até agora ninguém foi chamado ao Ministério Público! Mas eu acho que alguém deve ser chamado e responsabilizado pela justiça, porque isso não é pouco dinheiro.

OD: Essa situação demostra claramente a falta de capacidade interna para a gestão de grandes fundos. Defende essa ideia?

GM: Não é que o país não tenha capacidade de gerir grandes fundos. A gestão de grandes fundos é possível, mas o problema é a seriedade e rigor na gestão. Nem toda a agente é séria na gestão dos fundos. Se há um governo credível com pessoas competentes, sérias e honestas é possível gerir fundos públicos. A questão da gestão de grandes fundos públicos não é ‘Física Nuclear’! O grande problema é a falta de seriedade…

OD: Há quem defende a ideia da criação de um ‘FUNPI II’, a fim de evitar mais problemas que possam levar muitas figuras políticas e empresários à cadeia. Subscreve a ideia da criação de um novo fundo e com a ideia de se esquecer de tudo aquilo que já passou?

GM: Eu não sei, se seria ideal a criação de um novo FUNPI. Quando o FUNPI foi criado em 2011, eu estava no Banco Mundial e soube da existência deste fundo através de uma missão que vinha a Bissau. Essa missão acabou por saber que havia 15 milhões de dólares norte-americanos numa conta e que estava a ser alimentada por um fundo chamado FUNPI. O meu colega que fazia parte da missão, um dos macroeconomistas, foi ao meu gabinete e falou-me sobre isso.

Na altura a Guiné-Bissau era um dos países que eu cobria no Banco Mundial. Trabalhava na área da educação, saúde e protecção social. A preocupação era ver a forma de usar o dinheiro, porque senão o Estado pegaria naquilo. O Banco Mundial não concordava com a utilização desse fundo, o Fundo Monetário Internacional também não concordava com o próprio FUNPI, porque achava que, sendo um imposto indirecto, quem o pagava não era o exportador, mas o próprio produtor.

O argumento do Banco Mundial e do FMI era que a lógica o FUNPI ia contra a luta para estancar a pobreza. O Banco Mundial mandou fazer um estudo sobre o caso e esse estudo veio confirmar que de facto uma boa parte do FUNPI na verdade não era paga pelo exportador. Embora seja o exportador quem nominalmente pagava, quem pagava na verdade era o produtor. Por isso o Banco Mundial e o FMI pediram a sua abolição. Entenderam que era contra producente, considerando que a Guiné-Bissau tinha um plano estratégico de luta contra a pobreza, então não faz sentido criar um imposto que vai ter uma incidência muito forte e precisamente sobre os mais pobres que são produtores da castanha de caju.

O Banco Mundial e o FMI não concordaram com o FUNPI e eu alinhei-me nessas posições. Eu defendo a criação de outro imposto se for necessário para promover o sector de caju, eu acho que isso é necessário. Mas o FUNPI nos moldes em que estava…! Não concordo com a criação de um FUNPI II ou FUNPI III.

OD: O governo de que fazia parte iniciou as negociações para a privatização das Empresas Guinetel/Guiné Telecom e Correios da Guiné-Bissau. É verdade que o executivo negociou com uma empresa suíça ‘MGI Telecom’ que queria comprar as referidas empresas? 

GM: Não!… A ‘MGI’ é uma das empresas que estava interessada. Ela esteve várias vezes em conversas com o Governo, mas o problema é que o governo tinha uma abordagem que era fazer-se um concurso. Estávamos num processo de fazer todo um levantamento que nos permitisse perceber qual era a real situação. Criou-se uma comissão da privatização dessas duas empresas e que estava a trabalhar no sentido de apresentar um relatório que pudesse esclarecer qual a situação técnica e financeira real dessas empresas, ou seja, quais são créditos e quais são débitos.

A comissão trabalhou e até já tinha feito uma apresentação do seu trabalho ao Conselho dos Ministros. De lá saíram algumas orientações sobre alguns dados suplementares que seriam necessários recolher e a comissão estava a fazer o seu trabalho. Foi nesta altura que o governo liderado pelo Eng. Carlos Correia foi demitido. Caiu um governo e veio outro. Para o nosso espanto, ouvimos que o governo assinou um contrato com a empresa ‘MGI’ para a contagem de tráfico.

OD: Sabe-se que a referida empresa assinou finalmente um contrato em junho de 2016 com o governo para gerir o controlo e encaminhar exclusivamente todas as chamadas internacionais (entrada e saída) na Guiné-Bissau durante cinco (5) anos.  O assunto está a gerar muita polémica estes últimos meses, entre o governo e os operadores Orange e MTN, que alegam que o referido acordo viola a lei de base das telecomunicações do país e seus direitos plasmados nos cadernos de encargos. Quer fazer um comentário sobre esse assunto? 

GM: Estranho isso sinceramente. Porquê não houve um concurso público, sobretudo quando se fala de um montante elevadíssimo! O Presidente da República fala em dinheiro do Estado no cofre do Estado, mas aceitou promulgar esse tal contrato, sem que tenha havido um concurso público?…

OD: Qual é o montante que está em causa neste contrato?

GM: Eu vi o decreto, mas não sei o valor. Não sei em detalhes o preço que foi estabelecido, mas quando se calcula por alto, o preço das tarifas e se multiplica pelo tráfego telefónico, vê-se que são valores bastantes elevados. As contestações da parte das companhias telefónicas são legítimas, porque na verdade são elas que gerem as telecomunicações. Acho que elas não foram tidas nem achadas nestas negociações!

E há também a parte dos consumidores. Eu acho que todos nós, enquanto consumidores, temos que reclamar, porque isto vai encarecer as tarifas. E para onde irá o dinheiro? Ninguém sabe! Ninguém sabe o que está por detrás do contrato. Isto tudo foi feito de uma forma pouco transparente.

Houve uma precipitação para se fazer as coisas. Nós estávamos num processo de fazer um concurso internacional, porque não é só ‘MGI’ que estava interessada. Havia outras empresas interessadas. Portanto, um concurso acaba sempre por trazer o melhor e particularmente quem te dá melhores garantias e condições técnicas e financeiras.

OD: Pode explicar um pouco a origem da corrupção de que se fala tanto na Guiné-Bissau, porque há quem defende que os guineenses são corruptos, sobretudo no mundo político….

GM: Eu não acho que todos os guineenses sejam corruptos. Eu acho que há muitos guineenses honestos. Mas há um grupo de pessoas nesta sociedade que quer viver à ‘grande e à francesa’ sem fazer nada… sem trabalhar! Esse que é o problema. E a política tornou-se o campo privilegiado para isso. Quer dizer que há as pessoas que não podem fazer nada fora do âmbito da política, ou seja, não podem ganhar dinheiro a custa do seu trabalho. Foram todos pendurar-se na política. Quando têm oportunidades, o único objetivo pelo qual estão na política é estarem bem. E são essas mesmas pessoas que depois lançam areia nos olhos dos outros, dizendo que o fulano é corrupto.

Quer dizer que o mais corrupto diz que o outro é que é corrupto. Por isso concordo com a ideia de um grupo de partidos entre os quais o PAIGC, que apresentou uma carta às Nações Unidas solicitando que se constitua uma comissão internacional de inquérito para se ver de fato toda essa história de corrupção, porque toda a gente acusa toda a gente neste país. Quem é corrupto e quem não é corrupto, ninguém sabe?

Nós vimos o caso do Presidente da República, que acusou o governo do Eng. Domingos Simões Pereira de corrupção. Disse que derrubava o governo porque o governo era corrupto, porque vários membros do governo tinham processos judiciais e ainda ele mesmo tinha uma incompatibilidade com o líder do executivo.

Ora, em relação a corrupção, o que fazemos? Saímos do governo, fomos solicitar a Assembleia Nacional Popular que crie uma comissão de inquérito parlamentar para averiguar as acusações de corrupção que o Presidente da República fez. A comissão trabalhou, mas quando chegou a vez de a comissão interpelar o próprio Chefe de Estado que foi o acusador, ele disse que não acreditava na comissão e que a comissão não era séria, não era credível. Assim como é que se pode esclarecer as acusações de corrupção?

O problema não é que todos os guineenses sejam corruptos, o problema é que há corruptos e há os não corruptos. Há ainda uns que andam acusar os outros de corrupção e depois quando se cria os mecanismos para se saber de fato quem é corrupto, há bloqueio.

OD: Na altura, o Presidente da República falava numa soma estimada em mais de 50 (cinquenta) bilhões de francos CFA que não foi justificada…

GM: Vejam só, há coisas que não fazem sentido. As receitas internas no tempo do governo do Domingos Simões Pereira deviam andar por volta de 80 bilhões de Francos CFA. E o Presidente fala em 59 bilhões, você já imaginou um país que arrecadou cerca de 80 bilhões e que 59 bilhões tenham desaparecido assim? O Presidente da República proferiu essas acusações com base na Tabela de Operações Financeiras do Estado (TOFE), dizendo que nós pagamos salário no montante ‘X’ e que faltou outra parte do dinheiro. E perguntou onde é que foi parar essa parte do dinheiro. Eu na resposta que dei na altura expliquei para onde é que esse dinheiro foi.

Ele próprio, Presidente da República, foi ministro das finanças e sabe perfeitamente que o governo não é só pagamento de salários. Nós pagamos salários e muitas outras coisas que estão registadas na TOFE. Então há um registo de utilização desses fundos. Portanto, essa acusação não fazia sentido nenhum, porque qualquer pessoa que conhece as finanças públicas guineenses sabe que isso é impossível.

Se eu conseguisse desviar 59 bilhões de 80 bilhões, eu acho que merecia estar no livro de ‘Guinness’. Quem consegue desviar 70 ou mais por cento das receitas do Estado?

OD: Quando se fala da corrupção na Guiné-Bissau, o ministério das finanças é logo apontado como exemplo. O que facilita a endémica corrupção nas finanças públicas?

GM: Eu não posso dizer que haja uma corrupção endémica nas finanças públicas. Enquanto estive a frente do ministério da economia e finanças, fiz lá praticamente dois anos, criei todos os mecanismos institucionais de prestação de contas e não compactuei-me com a corrupção.

É evidente que há aquelas pequenas corrupções que existem na administração pública, quando um país é frágil, mas obviamente que ministério das finanças é onde estão concentrados os olhos de toda a gente. Porque como é o ministério que faz os pagamentos e arrecada as receitas, quando se fala em corrupção as pessoas pensam logo no ministério das finanças, mas eu não acredito que o ministério das finanças seja uma entidade corrupta. Há pessoas que trabalham no ministério das finanças que são pessoas idóneas e de bem. Não diria que o problema fosse realmente o ministério das finanças, mas sim é um problema genérico e global que tem que ser resolvido, mas sobretudo, criando instituições fortes de fiscalizações e da justiça.

OD: Com base na sua experiência, qual é o melhor caminho para a reforma nas finanças e na administração pública guineense em geral?

GM: Há várias reformas: há reforma fiscal, há reforma na própria gestão das finanças públicas que penso que são duas reformas importantes, nós já tínhamos começado com alguns passos no sentido dessas reformas fundamentais, por exemplo, realizamos aqui em Bissau uma conferência sobre a fiscalidade onde percorremos todo o sistema fiscal guineense. Com base nisso, criei uma comissão que já trabalhava na reforma da fiscalidade. Eu acho que é uma reforma muito importante. Deveríamos, com apoio de alguns consultores internacionais, rever o pacote fiscal da Guiné-Bissau.

Algumas pessoas criticam-nos dizendo que temos uma carga fiscal elevada e outras dizem que o sistema de administração fiscal não funciona bem etc… são estes elementos que nós estávamos realmente a verificar, no sentido de propor um ajustamento fiscal que permitisse que o Estado fosse eficaz na cobrança dos impostos. E que as pessoas paguem os impostos e que não houvesse grande fuga fiscal, por um lado, e por outro, que a máquina administrativa fiscal pudesse ser uma maquina eficiente e que pudesse ser vista com uma credibilidade.

Em relação às finanças públicas, houve também alguns passos importantes que nós já estávamos a dar em termos de gestão, por exemplo, a questão do orçamento participativo. Estávamos a pensar que a partir de 2017 poderíamos começar a elaborar um orçamento participativo. Havia um comité de tesouraria a nível do ministério das finanças que tomava decisões em relação à utilização do dinheiro e realização das despesas a nível do ministério, depois estávamos a trabalhar no saneamento de algumas situações das empresas públicas, por exemplo a questão da EAGB [empresa da Eletricidade e Água da Guiné-Bissau], que é uma das questões mais complicadas para o governo.

O governo gasta muito dinheiro na EAGB, porque EAGB não é uma empresa performante. Algumas medidas seriam tomadas no sentido de sanear a EAGB e torná-la uma empresa performante, que não depende do Estado. Se o governo deixar de dar dinheiro à EAGB hoje, não haverá luz a partir da próxima semana. São estas reformas que tínhamos iniciado a nível do ministério das finanças.

A nível da administração pública em geral, eu penso que o objetivo é claro, o objetivo é de tornar a nossa administração pública numa administração pública mais performante. Aí também há algumas coisas que já tínhamos começado a trabalhar a nível do nosso governo, nomeadamente, a questão da gestão das reformas, a questão da criação de fundos de pensões, a questão dos salários, a questão da promoção do mérito no acesso à função pública, o problema de gestão dos recursos humanos da administração pública.

Reparem que o país está numa situação em que o Estado é o único empregador. E toda gente quer trabalhar no Estado, porque não têm outras opções. Nós entramos e vimos muitos jovens muito bons, que não têm outras opções e que estão pendurados no Estado como estagiários, numa situação de precariedade. Uma das coisas que pensávamos fazer era mandar para reforma na função pública quem reunisse as condições para ir à reforma.

Portanto, estávamos a pensar num programa de fazer com que aquelas pessoas que devem ir à reforma fossem de fato à reforma, criando condições através de um fundo de pensões para essas pessoas de modo a dar oportunidade a muitos jovens quadros muito bem preparados. Há muita gente aqui com licenciatura e mestrado, mas que não têm como entrar para a administração pública. Desse modo criaríamos vagas para que essas pessoas possam entrar na função pública.

Fiz uma coisa enquanto ministro das finanças. Fizemos um concurso para o recrutamento de pessoas, sobretudo para o departamento de Contribuições e Impostos. Foi um concurso com o teste, tudo bem feito, com consultores vindos do Brasil. Queríamos que isso fosse um exemplo para as outras instituições do Estado. A verdade é que a administração pública em qualquer país do mundo deve ser a entidade mais performante. O que significa que são os melhores que devem entrar, mas o que nós verificamos é o contrário (…) porque o fulano é sobrinho de fulano ou pertence ao partido A ou B. As pessoas vão entrando sem concurso. Esse concurso foi um processo transparente e os melhores foram recrutados. Este é o exemplo que deve ser dado pelas instituições da administração pública.

OD: Muitos analistas defendem o modelo ruandês como o mais adequado para a reformatação do aparelho administrativo guineense. Partilha a mesma opinião?

GM: Eu não sei o que querem dizer, quando falam do modelo ruandês. Sei que Ruanda é um país com um desempenho muito elevado neste momento em África, não só em termos económicos, mas também em termos do desenvolvimento social etc. E tem sido de fato apontado como um modelo de rigor de gestão. O Presidente Paul Kagame é visto como um homem sério e de rigor. Há várias histórias do Kagame que nós conhecemos, só a título de exemplo, diziam que ele dava tarefas aos ministros nas reuniões e um mês depois numa reunião ele perguntava a cada ministro sobre as realizações que conseguiu nas tarefas que lhe foram incumbidas. Ele é um Presidente que participa nos trabalhos públicos até nas limpezas nas ruas. As pessoas que o conhecem dizem que é de fato um Chefe de Estado extremamente rigoroso.

Ruanda de fato é um exemplo, a nível da administração pública, quando se fala do modelo ruandês, fala-se sobretudo do rigor, da luta contra a corrupção, da transparência na gestão e da meritocracia, quer dizer só os melhores devem entrar.

Também estamos a ver agora o modelo da Tanzânia, que tem um Presidente que foi considerado o melhor Chefe de Estado do mundo no ano passado. Ele está a implementar um processo de saneamento e luta contra a corrupção. Recentemente vi uma notícia, no qual disseram que ele correu com nove mil funcionários da administração pública, porque descobriu que a maior parte destes funcionários tinham apresentado diplomas falsos. Quando se corre com 9 mil pessoas de uma vez, é preciso ter coragem política. Então, eu acho que é essa coragem política que nós temos que ter. Concordo com modelo ruandês e tanzaniano.

Quando falei do concurso que fizemos, foi uma coragem política, porque muita gente achava que estamos num país onde as pessoas entram pelas portas das traseiras, por que é que faríamos um concurso para recrutar pessoas, por cima de tudo que vão trabalhar nas contribuições e impostos, que é um dos departamentos das finanças onde as pessoas querem mais trabalhar. Se eu tivesse continuado no ministério das finanças é o que eu ia continuar a fazer. Para a Guiné-Bissau é preciso que haja a estabilidade política e governativa, que permitirá aos governantes ganharem a coragem política para a implementação de grandes reformas que o país precisa, que são as reformas nas finanças e na administração pública em geral.

OD: Durante a sua liderança no ministério das finanças muitos comentários circulavam a volta da sua alegada dificuldade de relacionamento com o atual Presidente da República, José Mário Vaz. Quais eram as razões do vosso desentendimento?

GM: Não. Eu sempre tive uma relação de muito respeito e de muita consideração, quer pessoal, quer institucional com o Presidente da República e até hoje continuo a ter. Houve dificuldades, são dificuldades que têm a ver com os posicionamentos que não são por vezes coincidentes. O Presidente da República tem a sua posição sobre várias matérias que não coincidem com a minha. E daí por vezes não estarmos de acordo um com o outro. Quando demitiu o governo do Eng. Domingos Simões Pereira, fez acusações que fez, mas eu de forma respeitosa fui esclarecer a situação. O Presidente da República tem tido alguns posicionamentos com os quais não concordo, mas estamos numa democracia.

Por exemplo, quando saímos da Mesa Redonda de Bruxelas, o Presidente da República achava que devia-se constituir uma Secretaria de Estado para a gestão dos fundos da Mesa Redonda e nós, eu e o Domingos Simões Pereira dissemos que não, porque há um ministério da economia e das finanças com seu ministro, que tem o papel de gestor dos fundos públicos e que tecnicamente coordenou o processo da elaboração da estratégia ‘Terra Ranka’ que foi apresentada em Bruxelas. Deve ser o próprio governo, através do ministério das finanças, a gerir os fundos, mas o Presidente da República entendia que devia-se criar uma Secretaria de Estado, compreendemos essa posição, mas não concordamos.

OD: Trabalhou no governo do PRS nos anos 2001/2003 e trabalhou ainda no governo do PAIGC. Geraldo Martins é do PCD ou do PAIGC?

GM: Eu fui do PCD! Aliás, fui um dos fundadores do Partido da Convergência Democrática (PCD) em 1991. Era um jovem quadro acabado de regressar dos estudos. Fizemos política na altura no PCD até 1994, perdemos as eleições e depois disso comecei a afastar-me globalmente da política. Trabalhei em algumas instâncias aqui no país.

Durante a guerra civil de 7 de junho, eu estava fora do país. Aproveitei para terminar os meus estudos do direito em Portugal, durante todo esse período afastei-me da política. Mas depois da guerra chamaram-me para trabalhar e dirigir um projeto no setor da educação financiado pelo Banco Mundial. O projeto denominado de ‘Firkidja’ e depois fui convidado para assumir o cargo do ministro da Educação, como independente. Saí do governo do PRS e fui para o Banco Mundial, onde estive dez (10) anos. Voltei a ser convidado em 2014 para o governo do Eng. Domingos Simões Pereira, como independente, para assumir as pastas da Economia e Finanças. Só depois da queda do governo do Domingos Simões Pereira é que fui inscrever-me no PAIGC, agora sou do PAIGC.

OD: O país mergulhou numa crise que assola todo mundo, já há dois anos. Como guineense na sua opinião qual é a saída possível da crise?

GM: Eu até há bem pouco tempo dizia que só temos dois caminhos. Ou o Presidente da República dissolve a Assembleia Nacional Popular e convoca eleições antecipadas ou cumpre o Acordo de Conacri. Eu acho que neste momento o Chefe de Estado tem menos margem de manobra. Isto é, dissolver o parlamento, porque não é depois de a CEDEAO ter dado este ultimato que se vai dissolver a assembleia. Eu penso que hoje o caminho é de fato o cumprimento do Acordo de Conacri, porque constitucionalmente, quando há uma crise política institucional que põe em causa o normal funcionamento das instituições, há um instrumento que é a dissolução do Parlamento. O PAIGC tem tido essa posição desde há algum tempo, mas há muita gente que não concorda.

Há uma crise. Não estou a falar de quem é o responsável e de quem não é. Objetivamente, há uma crise e o epicentro da crise é o Parlamento. A única solução é dissolver o Parlamento, mas parece que o Presidente da República não quer dissolver a Assembleia Nacional Popular, ele já o disse várias vezes.

Os sucessivos governos não conseguiram aprovar o programa. Foi-se a Conacri para tentar uma solução com a mediação da CEDEAO e surgiu o Acordo de Conacri, só que depois de chegada a sua hora de implementação, vimos que, afinal não havia uma vontade política para a sua implementação e ficamos nessa situação de impasse. Eu penso que o único caminho neste momento é de fato cumprir o acordo de Conacri.

Quando a CEDEAO insiste no cumprimento do Acordo de Conacri, há alguns elementos que são salientes. Um deles é a revisão da Constituição da República. A CEDEAO está farta, cada vez que há eleições, não há nenhuma legislatura que termine. E nós somos campeões de fazer eleições limpas, porque há uma falha na Constituição que permite que os perdedores venham às cavalitas, às costas do Presidente da República pedindo que derrube o governo.

O falecido Presidente da República, Malam Bacai Sanhá, foi pressionado para derrubar o governo de Carlos Gomes Júnior. O Bacai não aceitou, mas houve uma pressão enorme. Porquê? Porque temos um artigo na constituição da República que diz que ‘se o Presidente entender que há uma crise’ – isto é um julgamento subjetivo – derruba o governo, sem consequências para o Parlamento.

Enquanto não se mudar a Constituição, vamos continuar neste problema. Por isso, defendo uma revisão global da nossa Constituição. E o que a CEDEAO está a dizer no acordo de Conacri é, como o acordo de Conacri precisa de uma Assembleia funcional para fazer a revisão da constituição, não dissolvam o Parlamento, porque se dissolverem a ANP não haverá nenhuma instância para rever a Constituição. Tudo bem, se dissolver a Assembleia vamos às eleições, depois de seis meses ou um ano voltaremos ao mesmo problema. Teremos de chamar a CEDEAO de novo para vir ajudar a resolver o problema.

A CEDEAO está a passar-nos uma mensagem de que já está farta dos nossos problemas. Mudem a Constituição, se querem um sistema presidencialista, ou que se quiserem o sistema semipresidencialista, então criem condições para evitar estas quedas permanentes do governo.

Por exemplo, isto é uma ideia que eu vou lançar. A ideia é: se constar na Constituição da República que o Presidente da República, caso haja uma grave crise, pode derrubar o governo, mas se derrubar o governo, cai também a Assembleia Nacional Popular com o governo, até que daria sentido. Porque a legitimidade do executivo vem do Parlamento, onde há maioria que suporta o governo. Esta é apenas minha ideia, podem existir outras. Vamos supor que este artigo seja introduzido na Constituição. Então o Presidente da República antes de derrubar o governo tem que pensar dez vezes porque se o fizer, cai o Parlamento e terá que convocar eleições. Temos que arranjar maneira de criar estabilidade neste país, não a instabilidade.

Voltando a questão, qual é a saída, eu acho que a saída é o cumprimento do acordo. Vamos cumprir o acordo de Conacri. Vamos criar um governo consensual e vamos fazer uma Mesa Redonda como diz o acordo, depois vamos produzir um programa para os próximos doze meses que prevê que se possa fazer a revisão da Constituição, a lei eleitoral e vamos ver os principais documentos legislativos que interessam neste caso para estabilidade da Guiné-Bissau. E se for necessário podemos até fazer um referendum para perguntar ao povo se quer ou não este regime de semipresidencialismo.

OD: Apesar desta situação toda que se regista, tanto da queda do governo de Domingos Simões Pereira, assim como a do Carlos Correia, sente-se arrependido por ter deixado o Banco Mundial?

GM: Eu não me sinto arrependido. Foi uma decisão pessoal que tomei. Vim, porque acreditava e ainda acredito num projeto para este país. Foi com muita honra que eu participei nos governos em que eu participei. Obviamente que preferia que não estivéssemos hoje nesta instabilidade, mas eu continuo a acreditar na Guiné-Bissau.

Nós apresentamos um plano estratégico ‘Terra Ranka’ que foi muito bem acolhido pela comunidade internacional, infelizmente, este impasse colocou-nos nesta situação de não podermos avançar, mas não me arrependo.


Por: António Nhaga/ Assana Sambú e Sene Camará
Fotos: Marcelo N’canha Na Ritche
Maio de 2017

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