quinta-feira, 21 de setembro de 2017

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: CONSTRANGIMENTOS E DESAFIOS (*)

(*) Consta do livro «GuinéBissau, das contradições politicas aos desafios do futuro» de Luís Barbosa Vicente, Editado pela Chiado Editora (2016).

Gostaria de abordar a questão da administração pública guineense tecendo algumas considerações e testemunhos de um dos dirigentes deste setor, que acompanhou de forma direta todo o processo da instalação do Estado, bem como do serviço público, logo a seguir à proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau em 1973.

E, de forma indireta, já no ano de 2008, última tentativa de proceder a reforma da administração pública através do PARAP - Programa de Apoio à Reforma da Administração pública. Recorde-se que em 2008 deu-se o primeiro passo para a capacitação institucional do país através do programa PARAP – Programa de Apoio à Reforma da Administração Pública. O diagnóstico da situação apresentava o cenário que transcrevo: (…) Administração pública com cerca de 12 mil pessoas, um grande desfasamento face às receitas previstas no orçamento de Estado; mais de 2600 funcionários eram excendentários e 1600 analfabetos funcionais; crescimento da despesa pública a um ritmo assustador, essencialmente devido ao peso da massa salarial (133,5%) que ultrapassa as receitas fiscais, situação devidamente insustentável; uma administração pública opaca, de difícil acesso, distante, centralizada, desestruturada, não qualificável, não credível, ineficaz, não responsável e não prestava contas. E mais, o próprio Estado também não cumpria com as suas obrigações o que permitia aos funcionários públicos invocassem esse não cumprimento para justificarem a sua inercia (…).

Em setembro de 2008, descrevia nas suas memórias os três pontos que apresentarei de seguida (incluem anotações minhas):

(…) Estávamos em Outubro de 1974:
1.       Quanto à organização do Estado, pelo menos no que se refere à “Documentação”, verifiquei que havia muito bom ambiente, o que facilitava extraordinariamente as relações e a troca de pontos de vista. Como já vinha tendo bastante expediente para movimentar, pedi a colaboração de mais duas unidades, o que sucedeu rapidamente, através do destacamento de dois funcionários do Subcomissariado de Estado da Administração Interna, possuidores já de bastante experiência e cuja colaboração foi muito boa.
Havia necessidade de documentar muitas decisões, pois não era possível, sendo até muito inconveniente, manter apenas na oralidade todas as providências que estavam a ser tomadas. Um dos exemplos dessa situação era o próprio Governo: nada estava escrito sobre a sua estrutura e muito menos quanto aos titulares dos seus diferentes órgãos. Sabia-se apenas quem estava em determinado cargo, como possivelmente teria sido decidido em 24 de Setembro do ano anterior, aquando da proclamação do Estado. Mas no funcionamento dum Estado isso não basta, pois deve haver suporte que permita, a quem de direito, a informação necessária. (…) Fim.
De realçar que, à data de hoje, maio de 2016, ainda mantém-se esta situação. Existem, sem sombra de dúvida, os Órgãos de Soberania mas não estão institucionalizados os serviços de acordo com as normas e procedimentos da administração pública, esta é a minha constatação.
A maior parte dos serviços funcionam por autorrecriação dos seus dirigentes, funcionários e técnicos, sem quaisquer normas de procedimentos administrativos e de controlo previamente definidos, daí existirem falhas de comunicação entre as administrações do mesmo serviço público e serviços diferentes, incluindo a relação entre o cidadão, o Estado e Administração Pública.
2.       Continua (…) Hoje, em 2008, reconhece-se a falta que fazem relatos escritos de importantes factos ocorridos há dezenas de anos, por falta de documentos e até mesmo por já não estarem vivos aqueles que poderiam ser capazes de fazer um relato fiel dos factos que testemunharam dezenas de anos atrás. Pedi a atenção para esses factos e, por isso, começaram a ser feitas correções. Como exemplo: o amigo que estava no aeroporto, quando cheguei, disse-me que era o Subcomissário de Estado (Secretário de Estado) dos Correios e Telecomunicações. Mas apenas tinha sido mandado para lá, sem mais formalidades de qualquer natureza. É verdade que, num meio pequeno como aquele em que se estava, todos se conheciam. Mas o Estado não podia funcionar assim. Por isso, tratei da documentação relativa à sua posse, que foi conferida pelo Chefe do Estado e, quando a mesma decorria, entrou um Subcomissário de Estado que, em tom de brincadeira, disse “burocracia em marcha”. Mas a burocracia era necessária. (…) Fim.
Na verdade, um dos grandes problemas da administração pública guineense é a informalidade e inexistência de procedimentos previamente definidos. Ora, tal como nos ensina Weber, chamada de "Teoria de Burocracia na Administração”, cada época social caracterizou-se por um determinado sistema político e por uma elite dentro de determinada Cultura que, para manter essa Cultura e consequentemente o poder dessa Cultura "Estatal", e a sua também consequente legitimidade, desenvolveu um determinado aparelho ou estabelecimento administrativo para servir de suporte à sua Autoridade e manter a sociedade nessa educação, administração e cultura que é dinâmica de toda a Sociedade. Weber foi o primeiro teórico que, numa análise voltada para a estrutura, acreditava que a burocracia era a organização por excelência. A preocupação de Weber está na racionalidade, entendida como a adequação dos meios aos fins, e uma organização é racional quando é eficiente. Assim, a burocracia era a forma mais eficiente de uma organização. Ao sistematizar o seu estudo da burocracia, Weber começa com a análise dos processos de dominação ou Autoridade.

No caso concreto da Guiné-Bissau, a Autoridade Poder foi quem sempre definiu a estrutura da administração pública. As decisões estratégicas partem da componente política, mas não têm uma resposta tática nem de gestão, muito menos operacional, uma vez que os próprios gabinetes políticos e ministeriais têm uma estrutura centralizada que absorve todo o aparelho produtivo e sua comunicação com o exterior. Ausência de estruturas orgânicas e modelos de gestão definidos com rigor e coerência, dos serviços, repartições, ministérios ou secretarias de estado, aliás, até a própria presidência da república e assembleia nacional popular, promove iniciativas centralizadoras, de igual modo a nomeação e criação de categorias não reguladas no quadro de competências e organização dos serviços da administração pública central.

Exemplos flagrantes disso acontecem cada vez que há um novo governo, uma nova presidência da república e, mais, um novo ministro ou secretário de estado, alterando à sua maneira a estrutura que mais lhe aprouver, senão vejamos: cargos de assessor conselheiro; ministro diretor de gabinete, etc., são estruturas que definem por si, as competências e funções de Assessor ou de Conselheiro, Diretor de Gabinete e não Ministro Diretor de Gabinete, pese embora as regalias em termos de remuneração mensal serem compatíveis.
3.       Retomando (…). “Remuneração mensal - Tabela geral”, - Com a independência nacional vários cargos tiveram que ser criados, já que não existiam no aparelho administrativo da antiga colónia.
 Durante a Luta de Libertação eram desconhecidos quadros de pessoal e serviços a prestar contra uma remuneração periódica. Havia, isso sim, apenas militância. Mas ao assumir o poder, o Partido encontrou, nos vários pontos do território nacional, gente que trabalhava em diversos organismos estatais e que recebia todos os meses, de acordo com a categoria que lhe estava atribuída, uma compensação financeira pelo seu serviço. É que, embora com uma certa indefinição, a Administração continuava a funcionar com o pessoal que havia. Os seus salários, portanto, deviam ser pagos.
 Pois foi aí que o próprio Presidente da República, numa atitude que dava bem nota da camaradagem e espírito de equipa que havia, também quis participar, tanto fazendo a integração das novas funções que tinham surgido, como revendo o quadro das remunerações que estavam fixadas para os diferentes cargos. E argumentou ainda, com sucesso, a favor da extinção das duas categorias mais baixas que constavam da tabela salarial, fazendo passar os seus titulares para a categoria imediatamente superior.
 Contudo, havia um ponto basilar para o pagamento dos salários: era o do orçamento, com a previsão das receitas e despesas do Estado. Havia, de facto, um orçamento previsional das despesas e receitas, feito no ano anterior pelo governo colonial. Mas é evidente que não contemplava quaisquer encargos como os que resultaram da transferência dos poderes. A solução adotada foi a de tornar extensivo ao primeiro semestre de 1975 o orçamento preparado para 1974 e, nesse período, regularizar toda a situação entretanto surgida.
 Dias feriados - Outra questão dizia respeito aos dias feriados, que estavam conformes com os da antiga metrópole. Após uma chamada de atenção do Comissário Principal para isso, preparei o diploma que devia proceder à necessária alteração. Apresentado, o respetivo rascunho mereceu do Comissário Principal a observação de que estava incompleto, pois faltavam dois acontecimentos que, pelo respeito à opção religiosa de grande parte da população do País, deviam figurar no quadro dos feriados: o Ramadão e o Tabasky. Assim se fez.
Boletim Oficial - O Comissário de Estado Sem Pasta, entretanto, era quem mais procurava trocar impressões comigo, acompanhando e discutindo, com grande interesse, quase todos os trabalhos que eu fazia. Foi assim que analisamos a questão dos documentos relativos às decisões que eram tomadas pelos Órgãos do Estado e que deviam ter um carácter oficial e a devida publicidade. O Boletim Oficial, porém, deixara de ser publicado desde que tinha sido feita a total transferência dos poderes para o Partido, em Setembro último. Abordada a questão, decidiu-se retomar a publicação do jornal oficial, com designação e periodicidade idênticas às que havia anteriormente: um “Boletim Oficial” por semana. Mas como se estava já perto do fim do ano, o primeiro número só deveria ser publicado em Janeiro, o que efetivamente sucedeu.
Como é natural, no primeiro número deviam ser publicados os documentos mais importantes para o novo Estado: a Declaração da Independência Nacional, proclamada pelo Partido, e a Constituição da República da Guiné-Bissau, aprovada pela Assembleia Nacional Popular. A constituição do nosso primeiro executivo foi também publicada, bem como a designação dos mais altos responsáveis pelos diferentes departamentos dos órgãos governamentais. A publicação do Boletim Oficial continuou a ser feita, como durante o período colonial, pela Imprensa Nacional. Contudo, o Comissário de Estado Sem Pasta e o Secretário-Geral do Governo fizeram de revisores dos primeiros números.
“Hora legal e horário de trabalho” - A Guiné-Bissau estava atrasada uma hora em relação aos países vizinhos, o que já tinha provocado alguns contratempos, Por essa razão, e tendo em vista uma ainda maior sintonia com os nossos vizinhos, foi decidido corrigir essa situação, adiantando-se uma hora os nossos relógios. Foi escolhida a noite da passagem do ano para isso – e assim se fez. Mas também se decidiu, na mesma altura, mudar o horário de trabalho, passando a entrada dos trabalhadores do Estado, no primeiro período, a fazer-se meia hora mais cedo (às sete horas e trinta minutos).
Por último, na área da Justiça, fui-me identificando com muitos problemas, um dos quais era o atraso que se verificava na decisão dos processos. Compreendi quanta dificuldade tinha todos os intervenientes nos processos, desde magistrados aos mais modestos trabalhadores da área, pela grande carência de meios com que lutavam diariamente. As dificuldades não se punham só no funcionamento dos Tribunais, pois eram idênticas nas outras áreas: os registos, o notariado e a identificação civil lutavam com carências semelhantes, com todas as consequências que daí resultavam. (…). Fim da citação.
Volvidos 42 anos a seguir à independência, a justiça continua a funcionar mal, não garante ao cidadão o seu papel de defensor da causa pública, tal como refere a Ex-Ministra da Justiça, Carmelita Pires, no seu Discurso do dia da Justiça, no dia 13/10/2015, cito:
(…) Nestas considerações, que me permito, deixo bem claro que, no Governo exonerado ao qual pertenci, a Justiça foi claramente relegada para segundo plano. Não obstante a aprovação em Conselho de Ministro dum Programa de Urgência para o Setor, não foram disponibilizados sequer fundos mínimos que pudessem fazer face a dívidas acumuladas pelo Estado, mormente o pagamento de rendas a senhorios de imóveis onde estão instalados tribunais. Assim como, não foram tomados em consideração múltiplos contributos, bem como sérios avisos, remetidos ao então Primeiro-Ministro, na área da Justiça. Eventualmente esperava-se de mim o seguidismo cego, ou que enfileirasse acriticamente na lógica de uma desalmada luta pelo poder pessoal, para garantir um efémero e ingrato cargo. Porém, a ser, enganaram-se no perfil: não é o poder pelo poder que me faz correr.
Durante 14 meses, nesta CASA, com compromisso e honra, servimos com total fidelidade à Constituição e às leis. Todavia, mal começamos o trabalho e, por isso, estou insatisfeita. Sentimento que julgo generalizado a compatriotas, no país ou na diáspora, perante tantos desmandos e atropelos ao Estado de Direito. De facto, foi-me confiada uma tarefa para quatro anos. Quem ma confiou nunca me proporcionou pernas para andar. Pelo contrário, fui por várias vezes humilhada. Desde o início, na hierarquia do Governo: colocado o Ministério em 13.º lugar, em flagrante violação da Lei. Mas não é tempo só de lamúrias, nem quero contribuir para o ambiente já tão crispado, de tanta lavagem de roupa suja.
Bem sei, por experiência pessoal, como pode parecer impróprio ouvir uma Ministra da Justiça colocar em evidência a falência do Estado em proporcionar esse bem básico para uma sociedade que é a ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. Contudo, há um ano, no diagnóstico realizado, chamava a atenção para esse lamentável cenário. O aparelho judicial não está minimamente preparado para cumprir as suas funções, nem assenta numa jurisprudência consistente, padecendo de múltiplos vícios como a morosidade, a inconclusividade, uma legislação desadequada ou obsoleta, um deficit de procuração, redundando numa sensação generalizada de inoperância e de impunidade (…). Fim da citação.
Na verdade, não se pode abordar a questão da administração pública e das reformas necessárias sem garantir uma justiça imparcial, responsável e eficiente. Na verdade, a forma mais nobre de engrandecer uma nação é dignificar a sua justiça, torná-la exemplar, responsável e séria na luta para afirmação dos valores e princípios éticos que regem a sociedade.

Julho de 2016.

Luís Barbosa Vicente



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